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segunda-feira, maio 28, 2007

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Esse

Esse pode
O NETINHO

Luís Fernando Veríssimo


Gonzalo não prestava muita atenção nos males da avó. Não tinha tempo.Ninguém entendeu por que Gonzalo desistiu da herança da avó e largou o bom emprego que tinha e sumiu da cidade, sem destino, andarilho vagabundo.

Eu entendi.

Verdade que não se tratava de herança importante, nenhuma fortuna, mas os outros netos lutaram feito hienas famintas por ela. E, de todos, Gonzalo era quem tinha mais direito. Sobretudo ao apartamento. Gonzalo morou naquele apartamento a vida toda, ele e a avó, só os dois. A mãe, depois de separada, não podia sustentar os três filhos, então, mal Gonzalo nasceu, foi deixado aos cuidados da avó. Que não reclamou. Ao contrário, Gonzalo tornou-se a razão da sua vida. Fazia tudo por ele. Como geralmente acontece com os avós, ela o amava com uma doçura jamais dedicada a um filho. Gonzalo cresceu em meio aos mimos da avó, tinha chazinho quente quando adoecia, tinha comidinhas especiais todos os dias. Dela, ele merecia tudo, embora tudo que ela pudesse dar não fosse muito. A avó vivia da pensão de viúva que recebia de um montepio. Com aquele dinheirinho contado, sustentou o neto, pagou-lhe a faculdade e, mesmo depois de ele estar trabalhando, comprava-lhe meias de lã para o inverno e biscoitos recheados para o lanche da tarde.
Conheci a velhinha. Era gordinha e pequena, em tudo redonda. Uma avó de história em quadrinhos, uma perfeita Dona Benta, sempre sorrindo atrás dos óculos, sempre mexendo uma panela na cozinha, especialista em quitutes e histórias do tempo em que as moças coravam e os moços faziam mesuras.
Gonzalo gostava dela, claro que gostava, mas nunca chegou a ser um neto afetuoso. Recebia os carinhos da velha com a indiferença típica da juventude. Convertido em um espigado rapagão, continuava vivendo com a avó, e ela continuava a cumular-lhe de atenções, apesar de já estar bastante doente. Volta e meia, o ar lhe faltava e ela se sentia nas vascas da morte, os pulmões ameaçando explodir. Decidiu precaver-se. Temendo um dia ter de internar-se com urgência no hospital, passou a economizar para pagar o médico. Todos os meses, retirava um naco da pensão, fazia um canudinho com um atílio e guardava num compartimento que havia na parte de cima do roupeiro.
Gonzalo não prestava muita atenção nos males da avó. Não tinha tempo. Trabalhava de dia, estudava de noite e nos finais de semana ia para a casa da namorada. Não percebia que a velhinha piorava a cada semana. Uma noite, ela estava especialmente mal, e nem assim Gonzalo reparou. Chegou em casa perto da meia-noite, cansado e de mau humor. A velhinha ouviu o barulho na fechadura da porta, levantou-se com alguma dificuldade, arrastou-se até a cozinha e preparou um jantar quente para o neto. Levou o prato fumegante e um copo de suco de laranja até o quarto, onde ele dormia de roupa e tudo, as costas apoiadas na cabeceira da cama. Acordou-o com um beijo. Ele abriu os olhos, viu a comida e, sem dizer palavra, tomou o prato e começou a comer. Ela sorriu e lhe deu boa-noite. Gonzalo nem respondeu. Estava mastigando.
Aquela noite, a velhinha não dormiu. A falta de ar a sufocava angustiantemente. Pela manhã, chegou a pensar em não preparar o café para o neto. Nunca, em 20 anos, deixara de lhe fazer café. Não queria decepcioná-lo, não nesses dias em que ele trabalhava e estudava tanto. Levou 10 minutos parar erguer-se da cama, arrastou-se pelo corredor e foi para a cozinha. Quando Gonzalo saiu do banho, o café estava na mesa. Mas a velhinha se sentia arrasada. Pediu:
- Meu amor, não vai trabalhar hoje. Fica um pouco com a vó...
Gonzalo riu:
- Ih, não dá. Estou cheio de trabalho. - Só um pouquinho. Liga pra eles... - Não dá, vó. Não dá. Até estou atrasado. Tchau. Fui.
Foi. Saiu sem nem escovar os dentes. Voltou às onze da noite, cansado, como sempre. Encontrou a avó caída num canto do quarto, no chão, ao lado do banquinho no qual ela subia para alcançar o topo do roupeiro. Na mão direita, a trouxinha de dinheiro que ela guardara para pagar o hospital. Morrera sozinha, sufocada, decerto pensando no neto, decerto chamando por ele.
Depois do enterro, os irmãos disseram que Gonzalo podia continuar morando no apartamento. Ele não quis. Foi embora, ninguém sabe para onde. Largou tudo, ninguém sabe por que. Eu sei.

O Prazer das Palavras
Cláudio Moreno - 19/05/2007
ZERO HORA

Esqueçam essa reforma

Na coluna anterior, já qualifiquei de apressada e desnecessária essa reforma que, se for aprovada, vai fazer com que os brasileiros (mais) e os portugueses (menos) mudem sua maneira de escrever. Antes de prosseguir, contudo, acho melhor mostrar aos meus leitores as modificações anunciadas. Primeiro, ela propõe que nosso alfabeto passe a incluir também as letras k, w e y. Isso muda alguma coisa? Não, porque seu uso obedecerá às mesmas regras de hoje: só nos símbolos científicos internacionais e nos vocábulos derivados de nomes próprios (shakespeariano, darwinista, keynesiano, etc.). A novidade é que, fazendo parte do alfabeto oficial, a escola deverá ensinar às crianças o lugar que essas três letras ocupam na ordem alfabética.
Outra área em que haverá inovação é a das chamadas consoantes mudas. Quanto a elas, nada vai se alterar para os brasileiros. Elas permanecem nas palavras em que sempre foram pronunciadas, como em compacto, ficção, convicto, adepto, apto, eucalipto, núpcias, etc.; são consideradas facultativas nos vocábulos em que há divergência entre as normas cultas dos dois países (aspecto ou aspeto, dicção ou dição, facto ou fato, sector ou setor, ceptro ou cetro, corrupto ou corruto, recepção ou receção, amígdala ou amídala, amnistia ou anistia, sumptuoso ou suntuoso), aliás, como sempre aconteceu, numa convivência para lá de pacífica; finalmente, desaparecem nas palavras em que são mudas - o que significa que Portugal e os países africanos vão ter de eliminá-las de palavras como acção, afectivo, acto, director, exacto, adoptar, baptizar; no Brasil, elas não são usadas desde 1943.
Na acentuação é que o ônus da mudança é mais pesado para o Brasil, pois deixaremos de aplicar algumas regras que Portugal já não adota há muito: (1) seriam eliminados os acentos que marcam o ditongo aberto em palavras como jóia, heróico, idéia, assembléia; (2) desapareceriam o trema e o acento agudo no U, depois de G e de Q, em palavras como sagüi, lingüiça, seqüestro, argúem, averigúem; (3) seria eliminado o acento circunflexo dos hiatos ÊE, ÔO (vêem, vôo, enjôo, relêem). Continuam facultativos, como sempre, (1) o acento da 1ª pessoa do plural do pretérito perfeito (na pronúncia lusa, amámos e levámos, para distinguir de amamos e levamos, do presente do indicativo); (2) o acento agudo ou circunflexo sobre o E ou o O, nas palavras em que há divergência quanto ao timbre: acadêmico, académico; Antônio, António; Amazônia, Amazónia; fenômeno, fenómeno; gênio, génio; fênix, fénix; ônix, ónix; fêmur, fémur; sêmen, sémen; tênis, ténis; Vênus, Vénus; bônus, bónus; bebê, bebé; caratê, caraté; guichê, guiché; e muitas mais.
A meta obsessiva é diminuir ao máximo as diferenças entre Portugal e Brasil, cobrando de cada país sua taxa de sacrifício. Considerando a unificação gráfica do Português como um valor supremo - o que é perfeitamente discutível, se considerarmos o preço que se vai pagar por isso -, a reforma não hesita em limar aqui, aparar ali, lixar acolá, numa sucessão de "retoques" que parecem feitos por quem não é do ramo. Isso fica muito claro nas mudanças na acentuação, insignificantes para trazer uma verdadeira melhora no sistema, mas amplas o suficiente para perturbar a vida de todos nós. Na verdade, deveríamos ou deixar tudo como está, ou eliminar o acento de uma vez por todas. Na primeira hipótese (a mais econômica), daremos ao sistema atual o tempo indispensável para sua maturação; o trabalho que começou em 1971 deve prosseguir por mais cem anos, no mínimo, quando então ele estará consolidado, infiltrado até mesmo no movimento da mão que traça as palavras, perfeitamente assimilado por brasileiros que já terão nascido dentro dele, sem ter conhecido o sistema de 1943 ou anteriores. A segunda hipótese é muito mais radical e trabalhosa, pois exigiria um grande esforço de todos os já alfabetizados, obrigando-os a evitar, no texto escrito, as armadilhas de interpretação que hoje o acento se encarrega de desfazer - mas projetaria um futuro muito mais simples para os netos de nossos netos, pois teriam muito maior facilidade em dominar o sistema ortográfico.
Não duvido que o custo fabuloso dessa mudança fosse compensado, a médio prazo, pela maior eficiência dos programas de alfabetização. O que não tem cabimento é continuar usando acentuação mas mudar algumas regras em nome de uma unificação que é utópica e impossível, pois, considerando o grande número de formas facultativas que foram mantidas, os livros do Brasil e de Portugal continuarão a ser diferentes. A unificação ortográfica, que era a razão de ser da reforma, cai como um castelo de cartas - sem falar nas incontornáveis diferenças lexicais entre um país que apregoa "berbequim para betão ao desbarato" de outro que anuncia "furadeira para concreto em oferta" - e estão falando da mesma coisa.